Identidade: reflexão acerca da existência do eu

Cada ser humano – assim como toda e qualquer outra forma de existência (animada ou inanimada) – é único, uma vez que possui características únicas que o identificam como tal. Dessa identificação vem a existência da identidade – que consiste em uma definição (que, por si só, é sempre reducionista) – que é o que nos diferencia como criaturas individuais dotadas de características únicas.

Fonte da Imagem: Deshojacion Sagrada
Imagem: Deshojacion Sagrada

A palavra identidade tem sua origem no latim idem/identitas, e significa “aquilo que permanece o mesmo”, “aquilo que não muda”. Mas, será que há algo em nós que permanece sempre o mesmo? Será que há algo em nós que nunca muda?

O que nos identifica como cidadãos, como indivíduos na esfera social, é a nossa identidade – ou RG –, e esse documento, por sua vez, deve ser renovado a cada dez anos. Sendo assim, podemos indagar: por que existe essa necessidade se o que nos identifica é justamente aquilo que em nós não muda?

Mas, será que há algo em nós que não muda?

Desde que nascemos, sofremos inúmeras transformações físicas e intelectuais. No âmbito físico crescemos, engordamos, emagrecemos, nossos cabelos crescem, nossos dentes caem e nascem novos, dependendo de nossos cuidados os perdemos, nossa pele e nossa voz mudam etc.; no âmbito intelectual aprendemos a falar, ler e escrever, estudamos, trabalhamos, temos acesso às religiões, às ciências, à filosofia, somos afetados por nossas experiências sensíveis e isso afeta a maneira como lidamos e interpretamos tudo o que existe à nossa volta.

Acredito que todos nós, em algum momento, passamos ou passaremos pelo momento em que olhamos ou olharemos para algo nosso que nos remete ao passado – uma foto antiga, um texto, um desenho, uma gravação etc. – e fomos ou seremos arrebatados por uma profunda sensação de mudança ou mesmo de estranhamento – e isso, sem dúvida, afetou ou afetará cada um de nós de diferentes maneiras – e constatamos ou constataremos: não sou mais como era antes. Aquele eu de outrora não existe mais.

“Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.”
– (Antoine Lavoisier).

O próprio verbo de ligação “ser” nos remete à ideia de permanência, à ideia de imutabilidade do que chamamos de “eu”. O eu nunca “é”, ele apenas “está”, como bem observa o filósofo capixaba Júlio Pompeu em sua obra em parceria com o filósofo e professor Clóvis de Barros Filho – Somos Todos Canalhas –, uma vez que o “eu” existe unicamente no presente; o passado é memória e o futuro é expectativa do que viremos a “estar”.

Estamos ligados ao “eu” unicamente pelas memórias daquilo que conscientemente conhecemos e acreditamos que este seja. Nossas memórias, por si só, somente podem ser referentes ao passado – uma vez que se não fossem, não seriam memórias –, mas sempre estão no presente, pois o agente que memoriza está sempre no presente, isto é, só memorizamos aquilo que, de alguma forma, presenciamos – isto é, vivenciamos através de nossos sentidos – e, ainda, toda recorrência que fazemos à memória se dá sempre no tempo presente.

Conhecemos porque só sabemos sobre nós mesmos aquilo que acerca de nós temos consciência, e acreditamos porque, nós mesmos não nos conhecemos como, efetivamente, “estamos”. Logo, projetamos a existência do eu unicamente pela consciência que temos acerca deste, isto é, das memórias que temos e interpretações que fazemos acerca de eventos vividos. Há uma máxima que afirma que nunca conhecemos as pessoas como elas são e, de certa forma, podemos estender essa máxima a nós mesmos.

“Você não é senhor na sua própria casa.”
– (Sigmund Freud).

Embora a ciência tenha um conhecimento relativamente superficial acerca do cérebro humano, sabe-se que nosso inconsciente exerce profunda influência sobre nossa consciência. De acordo com o determinismo, nossas decisões conscientes são meros reflexos do que acontece em nossa inconsciência. Na concepção de Spinoza, por exemplo, somos tão predeterminados – isto é, instintivos – ao agir quanto qualquer outro animal. Um leão com fome não hesitará em abater uma presa, mas, no caso do homem ele pode ou não hesitar deliberativamente, é possível argumentar. Para Spinoza essa deliberação consciente é meramente ilusória, uma vez que nosso inconsciente – a parte de nosso cérebro à qual não temos acesso – já decidiu o que ainda faremos. Logo, para Spinoza, o livre-arbítrio não existe.

“Se decomponho o processo que está expresso na proposição ‘eu penso’, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível – por exemplo, que sou ‘eu’ que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um ‘Eu’, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar.”
– (Friedrich Nietzsche / Além do Bem e do Mal).

Boa parte de nós já vivenciou – ou conhece alguém que vivenciou – uma experiência e não agiu de acordo com aquilo que acreditara que agiria. Isso é perfeitamente normal e compreensível, e não implica, a rigor, que o agente em questão tenha sido desonesto ou infiel àquilo que é; implica unicamente que o eu nunca “é”, apenas “está”. Todas as coisas evoluem, isto é, mudam, são transformadas – e somos uma minúscula parte deste todo – e, como tal, não poderíamos ser diferentes.

Nossa identidade, isto é, a existência do eu, existe unicamente como memória, lembrança consciente e consequentemente interpretada daquilo que vivenciamos. Logo, nossa identidade, ou “eu”, consiste unicamente no vínculo que nossa memória – que “está”, a rigor, sempre no presente – estabelece e projeta do passado vivenciado. Ao refletirmos acerca da identidade e da existência do que chamamos de “eu”, constatamos que a única certeza que podemos ter é a de que não existem certezas.

“Conhece-te a ti mesmo, torna-te consciente de tua ignorância e será sábio.” – (Sócrates).


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