Metafísica

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A palavra metafísica foi utilizada pela primeira vez no século I a.C., por Andrônico de Rodes para se referir à coletânea de textos em que Aristóteles tratava das questões do ser como ser, de Deus, dos princípios e das causas primeiras, o que ele chamaria de “filosofia primeira”, da mesma forma que Descartes intitulou em latim sua obra Meditações metafísicas como Meditationes de prima philosophia. Sendo assim, embora Aristóteles seja considerado o pai fundador da metafísica, ele também nunca utilizou o termo, assim como Platão, este sim, o verdadeiro pai fundador da metafísica.

Mas, afinal, o que significa metafísica? Como sabemos, a física é a ciência que estuda a natureza – palavra esta que é justamente o significado do termo “física”. O prefixo grego meta-, por sua vez, significa “o que vem depois”, “além de”, “para além de”. Sendo assim, a junção dos termos meta- + -física significa “o que vem depois da natureza”, “além da natureza”, “para além da natureza”. Uma vez considerados o surgimento e o significado do termo metafísica, avancemos.

Platão possui, sem dúvida, um importante e vasto legado na história da filosofia e do próprio pensamento em si. Todavia, o principal legado de Platão é a metafísica. A filosofia primeira e física aristotélica possivelmente não existiriam sem a influência de Platão. O além-mundo cristão possivelmente não existiria sem a metafísica platônica. É claro que Platão certamente não foi o primeiro metafísico, uma vez que a humanidade sempre criou mundos ideais para não sucumbir à própria angústia, mas que Platão foi o grande catalisador que a tornou uma neurose, isso foi.

“Absorvido pelos poderes da alma, o filósofo desdenha os do corpo.”
– (Platão).

Platão se opôs ao corpo e seus afetos, tratando-os como doença, descolou a humanidade do homem e a isso chamou de racionalidade. Platão foi o primeiro grande opositor da realidade. A negação e o ódio ao mundo se elevaram. Platão foi o primeiro grande idealista e responsável pelo adoecimento da humanidade, o grande responsável por tornar nobreza em pobreza e pobreza em nobreza.

É claro que Platão foi um grande pensador e possui enorme validade para a história do pensamento, mas que foi um embusteiro superestimado, isso foi. Identifico-me mais com filósofos pré-socráticos, tais como Leucipo, Demócrito e Protágoras, mas é claro que você, caro leitor ou cara leitora, se conhece um pouquinho sobre esses pensadores – assim como eu –, já sabe disso.

Demócrito foi contemporâneo de Platão e consiste praticamente em sua antítese. Basicamente, Demócrito, juntamente com seu mestre Leucipo, foi o primeiro a defender que tudo o que existe é formado por átomos e que essas partículas que formam todas as coisas existem eternamente e não possuem nenhum destino. Epicuro e Lucrécio, posteriormente, foram profundamente influenciados por essa concepção e a aprimoraram sob o conceito de clinâmen – grosso modo, esse termo é uma referência ao desvio imprevisível dos átomos. Em outras palavras, para esses atomistas, a realidade é um caos e não possui sentido algum.

Não é à toa que Platão precisou criar o além-mundo para sustentar sua obsessão pela pureza. Platão sabia e não escondia de ninguém que neste mundo ela não seria alcançável, tampouco por meros mortais, que quase sempre acabam sendo derrotados por seus apetites provenientes de corpos desejosos e doentes.

Como sabemos, o cristianismo incorporou em sua teologia a metafísica platônica de acordo com sua interpretação. A obsessão pelo maior de todos os ideais humanos – leia-se justiça – não se sustenta na natureza, e por isso precisaram ir além dela para validá-lo.

“Tem gente que é tão humilde que acha que Deus fez tudo isso só para nós existirmos aqui. Isso é que é um Deus que entende da relação custo-benefício. Tem indivíduo que acha coisa pior, que Deus fez tudo isso só para esta pessoa existir. Com o dinheiro que carrega, com a cor da pele que tem, com a escola que frequentou, com o sotaque que usa, com a religião que pratica.”
– (Mario Sergio Cortella).

A metafísica caiu como uma luva. Se o universo possui um thelos, isso significa que tudo tem uma razão para ser como é e está no seu devido lugar, e isso faz com que consigamos suportar com menos dificuldade nossas mazelas, e sobretudo a aparente injustiça com a qual temos tanta dificuldade em conviver. E se esse thelos existe, ele só pode provir de Deus – ou de deuses – e isso é confortante, uma vez que este consiste no agrupamento de todos os atributos que nos faltam e pelos quais tanto somos obcecados, tais como verdade, justiça e eternidade.

Confesso, caro leitor e cara leitora, que, embora esse thelos seja belo e até um tanto atraente, possuo maior inclinação em não o corroborar, isto é, em acreditar que sua existência seja uma mera demonstração da estupefata capacidade da inteligência humana de erigir edifícios semióticos para não sucumbir ao indiferente caos que habita sua consciência.

Isso não implica, a rigor, em uma declaração de ateísmo, de modo que a seleção natural darwinista e o panteísmo de Spinoza me parecem fazer bastante sentido. Implica, isto sim, em uma concepção diferente e, a meu ver, mais abrangente da semiótica do termo Deus. O que isso significa?

“[…] não deixe que ninguém com um conceito fraco de seriedade ou uma moderação mal aplicada pense ou sustente que o homem é capaz de chegar tão longe ou ser tão instruído, seja no livro da palavra de Deus ou no livro das obras de Deus, em teologia ou filosofia, mas que, em vez disso, os homens são capazes de se empenhar em progredir cada vez mais nesses dois caminhos.”
– (Bacon: Advancement of Learning).

Isso significa que sou um materialista e antimetafísico, isto é, se Deus existe de alguma forma, ele não está fora do todo, Ele é o próprio todo. O que isso significa? Isso significa que Deus é todas as coisas e, portanto, é da única forma que poderia ser, de modo que, se não o fosse de tal forma, não seria Deus. Basicamente, nossos conceitos sobre bem e mal não tem valor algum para Deus, pois Ele É o que É e seguirá sendo independentemente do que nos tornarmos, porque nada se perde, tudo apenas se transforma, e isso apenas acontece porque Deus não depende de nós, de nossa aprovação e tampouco de nossa adoração e contemplação. Em suma, o que é bom ou melhor em nossa concepção em nada condiz necessariamente com a natureza eterna daquele que É, embora nós próprios sejamos minúsculas manifestações Dele.

A palavra materialismo possui dois significados em filosofia: o primeiro é o materialismo atomista de Leucipo e Demócrito – tendo sido este já mencionado neste texto –; o segundo é o chamado materialismo histórico, que, basicamente, é um conceito marxista do século XIX que nos diz que a forma como pensamos é reflexo de nossas interações com o mundo material, que por sua vez se dá de acordo com nossa posição social no mundo. Desse modo, nossa posição social é o que determina o papel que exercemos no mundo. Embora Marx seja um neurótico que acreditou ter encontrado a essência para tornar o mundo um lugar melhor – leia-se idealista –, assim como Platão, ele contribuiu – também assim como Platão – inegavelmente para a história do pensamento.

“Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, consequentemente, o homem encontra-se desamparado, pois não encontra nem dentro nem fora de si mesmo uma possibilidade de agarrar-se a algo. Sobretudo, ele não tem mais escusas. Se, com efeito, a existência precede a essência, nunca se poderá recorrer a uma natureza humana dada e definida para explicar alguma coisa; dizendo de outro modo, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontraremos à nossa disposição valores ou ordens que legitimem nosso comportamento.”
– (Jean-Paul Sartre).

Acredito na matéria, caro leitor e cara leitora, acredito que quando morremos tudo apenas acaba, de modo que do pó viemos e ao pó voltaremos – como nos ensina o Eclesiastes bíblico –, e nada além disso. Acredito no “repouso do pó”, como diria Emil Cioran, filósofo romeno do século XX.

Como Darwin nos ensina, a vida é, desde seus primórdios, permeada por violência e banhada por sangue, e apenas os mais aptos sobrevivem. Ademais, maquiavelicamente falando, tudo se trata de poder, de modo que, como Nietzsche nos aponta, sempre buscamos recompensas e fugimos de castigos, e, no mundo do capitalismo onde o materialismo histórico se mostra onipresente, o melhor aliado, o mais próximo de Deus – leia o termo aqui utilizado em sua acepção comum – que temos, é o dinheiro. E assim a natureza segue: indiferente à nossa megalomania.


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